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A Escola TEM partido: é um aparelho ideológico!


Por César Mangolin de Barros


Penso que estão todos errados sobre o “Escola sem partido”: tanto os que o defendem, quanto os que tem participado da frente contrária. Os primeiros pelo equívoco mesmo da proposta, pela censura e pelos fins políticos e conservadores embutidos no discurso fascistoide do “sem partido”. Os segundos pela maneira como lutam contra o projeto: no geral, saem em defesa da escola (e da educação formal) como se ali fosse o reino da liberdade e da razão, como bons iluministas; e em defesa dos professores de maneira geral, como se essa categoria fosse, em si, algo de avançado. Precisamos combater o projeto e aproveitar o momento para avançar na crítica à educação formal e expor suas contradições.

Ora, é claro que, taticamente, devemos defender o que temos aqui concretamente, já que a proposta que ganha corpo torna isso que já é ruim muito pior. Mas é preciso pensar a educação formal criticamente, pensar em seu papel reprodutor (e não revolucionário) e parar com essa besteira de acreditar que através do acesso à educação formal será possível transformar a realidade: um século e meio da “universalização” da educação formal nos países do centro do sistema capitalista parece já ter nos dado provas suficientes de que não é através da escola que superaremos as contradições e as desigualdades geradas pelo capitalismo. Pelo contrário: a insistência iluminista e idealista de que a escola pode despertar a “consciência crítica” (seja lá o que isso queira dizer!) serve tanto à causa popular quanto a espera pelo reino de Deus prometida pela Igreja aos servos na Idade Média.

É curioso ver marxistas alimentando essa crença na consciência, seja a filosófica, seja a de classe, despertada pela escola… Marx jamais tratou do que se convencionou chamar de “consciência de classe” e basta dar uma boa olhada pela história para saber que revolução alguma (nem as burguesas, nem as proletárias) pode ser reduzida a simples “tomada de consciência” e a atos de vontade… Mas esse é um bom assunto para outro texto. Voltemos ao universo da escola…

Esse aparelho escolar é também palco da luta de classes e somente assim deve ser tomado. Mas é um palco amplamente favorável à ordem vigente, sem dúvida. As lutas de classes adentram o espaço escolar, como adentram todos os espaços da vida social na medida em que se acirram: é isso que temos vivido hoje. É a partir da visão de conjunto das lutas que travamos hoje que devemos organizar a resistência em espaços como a escola. Isso pode permitir a elaboração de uma tática mais de acordo com a realidade objetiva, fugindo assim da sacralização da escola e da canonização dos professores.

Em 2015 escrevi e publiquei aqui um pequeno texto do que ainda se chamava de “lei do assédio ideológico”, de um deputado tucano. Tal projeto se desdobrou numa porção de outras tolices e nas versões do que se convencionou chamar “Escola sem partido”, essa aberração mais tendenciosa e doutrinadora que qualquer professor que se pretenda doutrinador (e isso é sempre uma burrice!) em uma sala de aula.

Retomo argumentos daquele texto que, no calor das panelas batendo e da pequena burguesia saindo às ruas pedindo o golpe, teve uma repercussão bastante curiosa e à altura dessa gente: fui ofendido e ameaçado de todas as mais criativas maneiras! Um espetáculo de matar de rir e, ao mesmo tempo, assombrar qualquer um!

Em síntese, esses projetos ameaçam com advertência, demissão e até cadeia aquele professor que ensine a partir de “doutrinas” e não de ciência (seja lá o que isso queira dizer!), ou ainda, o “professor doutrinador” seria aquele que não apresenta de maneira imparcial todas as possibilidades de explicação e todos as correntes de pensamento para que os estudantes pudessem livremente escolher como pensar.

Três observações sobre isso – o doutrinador; as correntes de pensamento; a imparcialidade:


1º – é óbvio que chamam de “doutrinador” qualquer professor marxista, ou o que entendem por isso, afinal estudar Marx dá muito trabalho. Conheço muita gente que se apresenta como marxista e faz apenas um belo discurso liberal. Muito mais ainda gente que nunca leu uma página de Marx e fala com tom de entendedor que sua teoria está superada, ou que suas previsões não deram certo, como se Marx tivesse gasto tempo com previsões e fosse um vidente com bola de cristal e não um homem de ciência…


2º – com a experiência que já carrego no ensino superior, tenho certeza que é impossível para qualquer professor, em qualquer disciplina, passar de maneira adequada por uma corrente de pensamento sem vulgarizá-la, quanto mais percorrer todas elas… Todavia, ainda que isso fosse possível, o processo de construção de conhecimento não corresponde necessariamente ao ato de “passar” para estudantes todas ou algumas correntes de pensamento de um tema qualquer… Embora praticada largamente, a educação bancária (que “deposita” conhecimento pronto na cabeça de estudantes – como chamava Paulo Freire) não é capaz de construir conhecimento algum, nem a praticada por professores revolucionários, nem a praticada por professores conservadores e por apologetas da ordem, que constituem largamente a maioria dessa infeliz categoria. No geral, aliás, os estudantes tampouco estão realmente interessados em construir conhecimento, mesmo na faculdade… Compelidos aos bancos do ensino superior pela necessidade do emprego e pelo aumento das exigências de certificação escolar por parte das empresas, os estudantes e professores portam-se, no geral, como pessoas que cumprem protocolos e esforçam-se em provas para garantir que sua permanência por ali seja a mínima necessária. Chamei isso de exclusão prorrogada (conceito emprestado de Pierre Bourdieu) e o fenômeno de “sobrecertificação” num artigo de 2010 (quem quiser dar uma olhada, segue o link do artigo: https://cesarmangolin.files.wordpress.com/2010/02/mangolin-sobrecertificac3a7c3a3o-e-expansc3a3o-o-ensino-superior-brasileiro-e-a-exclusc3a3o-prorrogada-de-pierre-bourdieu.pdf ).


3º – a ilusão da imparcialidade pode levar a dois caminhos: o primeiro é o do dogmatismo próprio do positivismo, de que a ciência é verdadeira, neutra e imparcial; o segundo é o do relativismo teórico, próprio da moda “pós-moderna”. No primeiro caso o caminho é tratar a sociedade capitalista e o império da técnica como o último estágio do desenvolvimento das sociedades humanas, que basta apenas aprimorar e colocar em ordem para ser perfeito; no segundo caso, temos a instauração do irracionalismo, pura e simplesmente. Presente já na “filosofia espontânea” do senso comum, derivado do individualismo próprio da sociedade burguesa, tratar a verdade subjetivamente, havendo como critério único o que cada um quer “achar”, ou o “olhar” particular e individual, parece até avançado e modernoso para muita gente que tem preguiça de estudar. Nos dois casos temos instrumentos poderosos para auxiliar a reprodução da ordem burguesa: o primeiro porque a afirma como única verdade e resultado de inexorável processo da evolução histórica; o segundo porque torna impossível pensar a sociedade existente como estrutura, porque nega o conhecimento objetivo e impede pensar em transformações concretas de conjunto. Temos aqui apenas um “museu de novidades” filosóficas e a militância em favor da ordem burguesa travestida de “imparcialidade”.


É um conjunto de besteiras esse projeto reacionário, mas não é uma novidade, de qualquer maneira: apenas acentua características do espaço escolar, pegando carona na onda conservadora que tem permitido com que as pessoas coloquem pra fora seus preconceitos e suas mesquinharias de maneira cada vez mais agressiva. Não surpreende, mas assusta, sem dúvida, que apareça algo desse tipo. Sou contra, evidentemente, uma loucura dessas, porque sei a quais interesses serve e quais seriam os penalizados.

Mas seria até curioso, se levássemos isso a sério, imaginar que estariam proibidos os que, de fato, doutrinam e vendem ilusões nas salas de aula: a educação formal quase inteira estaria condenada!!!! Tenho certeza absoluta de que os marxistas não formam a maioria dos professores. Antes fosse. Nosso quadro docente é formado por gente que, por sua vez, foi formada por professores que propagam ilusões sobre a sociedade burguesa. Ilusões mesmo, porque carecem de qualquer fundamento científico, ou do seu princípio básico, o postulado da objetividade.

Por exemplo: qualquer um, de esquerda ou de direita, que tenha gasto o tempo necessário para estudar (e não é pouco tempo…), sabe que Marx foi o pensador capaz de, a partir do postulado da objetividade, portanto cientificamente, analisar e descrever a estrutura e a dinâmica contraditória do capitalismo, fazendo ao mesmo tempo a crítica das teorias econômicas que partiam de pressupostos falsos e ideológicos, como o antropologismo idealista e o indivíduo. Não é por acaso que O Capital tem como sub título a “crítica da economia política”: ele não tem como objetivo construir outra versão da economia política, mas a de demonstrar suas falácias, seus equívocos e sua distância do que se pode considerar ciência…Pois bem: partindo desse exemplo simples e comparativo da obra de Marx e da chamada economia clássica, poderíamos imaginar, levando uma lei dessas a sério, que a maior parte dos professores estaria ferrada, porque a maioria dos professores vende ilusões nas salas de aula. Defendem que a sociedade na qual vivemos é um conjunto de relações mercantis individuais vantajosas reciprocamente; afirmam que vivemos numa sociedade que permite a mobilidade social e possibilita a qualquer um ser o que quiser, dependendo apenas de sua vontade e de sua dedicação; defendem a meritocracia como princípio organizador das posições de indivíduos que vivem, objetivamente, em condições essencialmente desiguais; culpabilizam as vítimas excluídas do acesso aos gêneros necessários para manter a vida; defendem um sistema que mata centenas de milhares todos os dias pela fome, pela violência urbana, pela guerra; fazem com que todos acreditem que tomar a vida como sendo apenas o trabalho é o caminho para a emancipação; convencem que a vida bovina e honesta é o ideal; fazem com que os trabalhadores se tornem egoístas e vejam seus pares como concorrentes, não como companheiros; fazem com que lutem por sua própria escravidão como se lutassem pela liberdade; com que se rastejem sonhando com as alturas enquanto comem a poeira do chão…

É isso que fazem os professores, como regra. A educação formal sempre foi um poderoso instrumento de reprodução da ordem, não de sua transformação. Vai continuar assim, para a frustração de educadores bem intencionados que alimentam ilusões com sua ação. Os professores são os agentes diretos da exclusão conformada, não os que podem levar à libertação.

O “Escola sem partido” não tem como objetivo bloquear a “doutrinação” nas escolas, mas exatamente o contrário: eliminar os pequenos focos de lucidez criativa e progressista existentes ali. Os professores são, em sua maioria, doutrinadores e vendedores de ilusões acerca da ordem capitalista, formadores de carneiros, criadores de fantasias, ratificadores das nossas desgraças…

Devemos lutar contra a acentuação da inculcação ideológica nas escolas e em todos os aparelhos ideológicos, atuar em suas contradições, mas sem perder de vista a realidade objetiva desses aparelhos, sem perder de vista que objetivo é ir para além deles.


Texto publicado originalmente em:


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