Análise da conjuntura política brasileira - Entrevista* com o Dr. Cesar Mangolin de Barros do ICHS -
*ENTREVISTA CONCEDIDA A EDUARDO VASCO, CORRESPONDENTE DO JORNAL PRAVDA.
Eduardo Vasco, Pravda. Quem vinha pedindo o “Fora Temer” eram os movimentos sociais, mas a partir das denúncias veiculadas pela Globo, a imprensa também pede a cabeça do presidente. Por que essa reviravolta na posição dos grandes meios de comunicação, que eram talvez o principal sustentáculo do governo Temer?
Dr. Cesar Mangolin de Barros, ICHS. Parece que tudo pode se explicar pelos rumores do “golpe dentro do golpe”, que cresceram desde novembro do ano passado. A ideia embutida aí é que o golpe tinha como ponto final a passagem da presidência às mãos do PSDB, fiel escudeiro no país dos interesses do capital estrangeiro, da alta finança internacional e da burguesia associada. Foram quadros do PSDB, como José Serra, que estiveram nos EUA antes do golpe ajustando as coisas e prometendo a entrega da Petrobras. O PSDB é o partido que assume como programa a agenda das políticas neoliberais e a ideia de que a economia brasileira deve caminhar, necessariamente, atrelada e submetida aos interesses e grandes lances do capital estrangeiro. As conclusões da interpretação de FHC sobre a dependência (desde a década de 1970) sempre foram no sentido da defesa da integração subordinada da periferia ao centro, jamais um projeto de desenvolvimento de bases nacionais e com algum nível de autonomia, ao contrário do que muita gente mesmo de esquerda pensa. Isso ocorreu porque há o velho mal hábito de muitos de falar com propriedade de algo que não foi estudado. Lembro que no começo do seu primeiro governo foi divulgada amplamente a informação de que FHC teria dito para que esquecessem do que ele escreveu. Ora, ele não só não esqueceu como aplicou suas conclusões teóricas fielmente, ajustando-as às condições objetivas da conjuntura brasileira e mundial dos anos 1990, inclusive as ajustando à cartilha do FMI, do Banco Mundial e do Consenso de Washington. A histórica foto de FHC com a língua de fora, qual cachorrinho manso, enquanto Clinton (que era presidente dos EUA), por trás, se apoiava em seus ombros, é uma boa síntese da relação do PSDB com o imperialismo. Não foi a toa que Serra seguiu, ainda que com incompetência patente e grosseiramente assumida, para o Ministério das Relações Exteriores. O PMDB, Michel Temer e sua camarilha não são plenamente confiáveis. O golpe não pode ser entendido como uma pendenga entre ladrões de galinhas (embora eles cumpram seu papel e façam algum barulho...) ou uma disputa entre partidos: o golpe deve ser compreendido como a derrubada pela força (já que não tiveram a capacidade de derrotá-lo nas urnas,como ocorreu na Argentina, por exemplo) de um ciclo de governos cujo programa para formação social capitalista brasileira tinha pretensões neodesenvolvimentistas. Um programa amplamente baseado numa burguesia interna (que é diferente de burguesia nacional, cf. Poulantzas) ligada à construção pesada e civil particularmente (essa mesma fração burguesa que foi para a cadeia) e na elevação das condições de vida dos trabalhadores via programas sociais de distribuição de renda, incentivos a pequenos e médios produtores, geração de empregos e concessão de crédito para consumo. Ainda que não tenha conseguido estruturar e desencadear um longo ciclo ascendente na economia em virtude da crise mundial e de problemas internos, o fato concreto é que os dois mandatos de Lula e o de Dilma conseguiram, de fato, melhorar substancialmente a vida de trabalhadores e, inclusive, transformar a vida em alguns cantões do Brasil que viviam num secular abandono. Podemos reunir uma série de frações burguesas que não estavam plenamente favorecidas por esse programa e de interesses diversos que explicam o golpe, tendo a crise mundial do capitalismo como pano de fundo: os interesses das frações da burguesia brasileira associada , os interesses das grandes corporações internacionais (pelo petróleo brasileiro, por exemplo), a política externa mais autônoma e a aproximação do Brasil de um eixo fora das asas dos EUA e a formação dos BRIC's, a ameaça de democratização e, ao mesmo tempo, de um marco regulatório dos meios de comunicação, os interesses de partidos e políticos ligados às históricas benesses do seu próprio aparelho de Estado e as sucessivas derrotas eleitorais. Isso tudo formou uma unidade de ruptura, ainda que com interesses difusos, mas uma unidade que tornou o golpe viável, após uma intensa campanha midiática e a geração de uma crise política que começou a afetar inclusive a economia. Mas o golpe possui, como qualquer golpe, uma dessas frações ou um desses grupos como dominante e, em última instância, será aquela fração que vai se impor no processo. O derrubada de Temer agora e a troca da presidência por alguém de maior e estrita confiança faz com que os interesses do grande capital internacional e da burguesia local associada prevaleçam sobre os demais. Os fantoches desses interesses pertencem ao PSDB.
[if !supportLists]Eduardo Vasco, Pravda. Há setores que pedem “Diretas já”, outros, eleições indiretas para presidente da República, e há ainda quem peça a volta de Dilma. Qual o caminho para resolver essa crise política?
Dr. Cesar Mangolin de Barros, ICHS. A eleição indireta é o golpe dentro do golpe, como disse acima: é o projeto que vem desde o ano passado. Caso pensemos no que seria razoável e justo (mesmo levando em consideração a nossa legislação...), o mais correto seria a restituição do mandato indevidamente interrompido da presidenta Dilma Rousseff. Há setores que bem sabem disso e a blindagem já está feita: o TSE deve cassar a chapa Dilma-Temer por causa de caixa dois no mês que vem. Mas mesmo que isso não ocorresse, não me parece que seria de maneira alguma viável politicamente (ainda que me pareça o mais correto a se fazer agora!) o retorno da presidenta Dilma. Portanto, para as forças mais consequentes e progressistas, para trabalhadores e para aqueles que se interessam por fazer com que esse retrocesso que vivemos seja interrompido o mais brevemente possível (os reflexos disso ainda serão sentidos por muito tempo, infelizmente), a melhor opção agora seria eleições diretas: única possibilidade para que consigamos um governo novo e que rompa com o ciclo de reformas regressivas que afetam diretamente os trabalhadores e suas combalidas condições de vida. Poderíamos ousar um tanto mais: reivindicar eleições gerais já! Não será possível a governo algum fazer qualquer coisa que nos retire dessa crise com o parlamento que temos. Claro que isso deve ser conquistado nas ruas pelas organizações consequentes que possuem base social, como os movimentos populares e partidos do campo da esquerda que não estejam mergulhados em discursos infantis ou de desvios esquerdistas, no sentido pejorativo atribuído ao termo por Lênin. Há organizações que se dizem de esquerda fazendo já um discurso de que as eleições não resolverão nada e que é preciso fazer a revolução (!), mesmo que elas mesmas não sejam capazes de colocar meia dúzia de pessoas nas ruas. Na verdade e na prática, novamente anunciam que vão dar os braços com a direita golpista, como fizeram na primeira fase do golpe com o discurso “a culpa é do PT” ou ainda antes, defendendo o voto nulo nas eleições de 2014 por considerarem Dilma e Aécio a mesma coisa. Para a possibilidade de uma solução menos danosa para os trabalhadores a luta agora é por eleições diretas e por uma candidatura que seja capaz de unificar setores da esquerda e progressistas e que seja capaz de reunir votos suficientes para a vitória. O candidato ou candidata pouco importa, embora eu não acredite que havendo eleições agora nós tenhamos qualquer outra possibilidade de vitória que não seja em torno de Lula (e não fico feliz com isso, apenas é o que temos como melhor opção agora em termos de voto). Isso não é reformismo ou qualquer coisa assim: é ser consequente, estar comprometido e ser responsável compreendendo bem a correlação de forças dessa conjuntura. Apenas os setores pequeno burgueses que discutem política em cervejadas e depois se recolhem em suas casas quentinhas e longe das periferias pensam que a solução do “menos pior” é abandonar a luta. Menos pior pode significar muito mais para as camadas mais vulneráveis socialmente: a possibilidade de ter uma refeição diária ou não, por exemplo, ou até a possibilidade de se organizar politicamente em condições menos repressivas.
[if !supportLists]Eduardo Vasco, Pravda. [endif]Desde o começo da Lava Jato, três anos atrás, existem pesadas críticas à Polícia Federal e ao Judiciário de que essa operação serve apenas para perseguir membros do PT e prender o ex-presidente Lula, ao mesmo tempo em que políticos do PSDB não são alvejados, embora estejam envolvidos em esquemas de corrupção. Como fica esse argumento após a denúncia e possível prisão de Aécio Neves, presidente do PSDB?
Dr. Cesar Mangolin de Barros, ICHS. O argumento persiste caso pensemos no conjunto e pensemos nas contradições de dentro desse processo. E há contradições. O discurso de Temer após as denúncias divulgadas parece dar conta de que ele e mais uma turma não pretendem cumprir nenhum acordo de saída sem resistência. A cúpula do golpe está rachada e, como mencionei acima, o que estamos vivendo é apenas o momento em que os verdadeiros donos do golpe pretendem tomar seus assentos e dar prosseguimento ao seu projeto. O tucano Sergio Moro não tem nenhuma relação com a prisão de Aécio, por exemplo. Aliás, ele tentou blindar a tucanagem o tempo todo. Bem sabemos que suas raízes no PSDB e no pensamento de direita no Brasil são de berço. Aécio me parece um boi de piranha: ele pode matar a fome de muita gente que estava passando a simpatizar mais com a crítica ao golpe em virtude das tendenciosas investigações da PF e da tropa de Curitiba, além das reformas que começaram a fazer acender a luz de alerta a uma fração mais ampla da população. Isso se refletiu bem na greve geral de abril. Mas Aécio e Temer ainda abrem uma possibilidade de irem para cima de Lula com maior ferocidade e com uma reação popular menos incisiva. O argumento de que o Aécio também caiu deve servir pra muita gente aceitar mais desmandos da Lava Jato agora. Mas não sou contrário que crimes que ocorreram de fato sejam punidos, de qualquer parte. Apenas parece não haver (depois de tanto tempo e tendo a vida devassada) nada que permita dizer que Lula é criminoso, a não ser que as “doações” de empresas para caixa dois de campanha sirvam para isso, o que seria de todo escandaloso, visto que qualquer criança brasileira de dez anos de idade sabe bem que não há eleição e, principalmente, eleitos no país sem essa prática, o que não torna o caixa dois razoável, evidentemente: apenas precisaríamos aplicar sentenças (multas, prisão, perda de direitos políticos etc.) a todos os partidos que possuem alguma representação no parlamento ou mandatos no executivo, sem exceção.
[if !supportLists]Eduardo Vasco, Pravda. [endif]Desde o impeachment de Dilma Rousseff houve inúmeros escândalos de corrupção, crises dentro do governo, aumento do desemprego e propostas como as reformas trabalhista e previdenciária, que causaram revolta entre os trabalhadores e a população em geral. Isso se reflete na baixa popularidade de Temer. Como você avalia esse conturbado período de cerca de um ano, entre a destituição de Dilma e os últimos acontecimentos desta semana?
Dr. Cesar Mangolin de Barros, ICHS. O governo golpista tentou aproveitar o clima de transição e de terra arrasada (criado pela imprensa) para justificar medidas extremas com o velho discurso de que era importante para o Brasil. Ora, bem sabemos que não existem coisas boas “para o Brasil”, mas medidas que atendem bem a determinados grupos estrangeiros e brasileiros e afetam de maneira considerável outro tanto. As reformas (trabalhista, previdência, tributária) atendem diretamente aos ditames da cartilha neoliberal, que como disse no começo da conversa, foi aplicada ao longo dos anos 1990 no Brasil. Aliás, vale lembrar que foram as consequências sociais nefastas dessas políticas que proporcionaram as condições para que uma série de governos de cento esquerda e de esquerda aparecessem por toda a América Latina no final dos anos 1990 e ao longo da primeira década do século. A possibilidade de programas mais ou menos avançados obedeceu às condições objetivas internas de cada país e ao nível de acirramento das lutas de classes. Isso explica governos mais moderados e de conciliação mais ampla, como ocorreu no Brasil e na Argentina e experiências mais radicalizadas, casos da Bolívia, da Venezuela e, em parte, do Equador. O que Temer fez foi tentar resolver tudo a toque de caixa, fazer todo o serviço mais ruim numa tacada só, o que poderia tornar qualquer migalha caída da mesa um banquete para os miseráveis. Penso nesse ultimo ano apenas como o aprofundamento de medidas regressivas cujos efeitos podem se estender por décadas e como o aprofundamento de posições mais à direita e de ideias fascistizantes em círculos mais amplos, principalmente entre a juventude, o que aponta para um quadro duradouro de crise política.
[if !supportLists]Eduardo Vasco, Pravda. [endif]Quais podem ser os próximos capítulos dessa imensa crise política?
Dr. Cesar Mangolin de Barros, ICHS. Penso que Temer não se sustenta. De qualquer maneira, não cabe a ninguém tentar prever o futuro. O papel de quem faz a análise é pensar em possibilidades e probabilidades, não acertar o futuro, coisa para astrólogos. Temer deve cair não apenas porque defendeu o pagamento de “mesada” para Cunha ficar calado: deve cair porque não convém a um presidente da república trocar ideias sobre como subornar juízes e procuradores e empurrar processos com a barriga. Isso já é mais que o necessário para destituí-lo. Mas parece que ele tenta medir ainda as forças que tem e a repercussão do caso. Com as grandes emissoras de TV contra ele, penso ser difícil que consiga reverter a crise. Como tudo que se refere aos processos políticos, quem vai decidir o caminho a seguir é, sem dúvida, a confluência de contradições e forças políticas que podem se juntar e formar uma unidade consensual, ainda que por interesses difusos e até mesmo antagônicos. Em poucas palavras, será a capacidade de arregimentação de base popular quem dará o peso final para os próximos capítulos da crise política. Insisto que a saída mais progressista possível nessa conjuntura altamente desfavorável aos progressistas e à esquerda seria o caminho das eleições diretas e a eleição de um governo comprometido com a reversão das reformas que afetam os trabalhadores e a retomada da normalidade democrática, ainda que com todos os limites da ordem burguesa. Mas penso ainda que, independentemente de qualquer uma das possibilidades, temos um cenário altamente pessimista para a esquerda no médio prazo. Os danos causados pela guinada à direita (e isso tem ocorrido por todo o mundo) farão, sem dúvida, ainda muitos e prolongados estragos. O momento exigirá das organizações de esquerda mais consequentes uma grande capacidade autocrítica, o abandono de alguma das suas tendências conciliadoras e o empenho num longo e paciente trabalho de construção de bases sociais e luta em todas as frentes, inclusive na frente da luta teórica.